A Responsabilidade do Advogado por Violação
do Segredo Profissional
Trabalho de fim de estágio apresentado ao Conselho Distrital
da Ordem dos Advogados de Coimbra, Novembro de 1997. Publicado na Revista da Ordem dos Advogados
O advogado está obrigado, ética e juridicamente, a manter segredo de todos os
factos e documentos de que tome conhecimento, directa ou indirectamente, no
exercício da sua profissão. O segredo profissional do advogado deriva de dois
fundamentos básicos: por um lado, da necessidade de tutela da relação de confiança
que deve existir entre o cliente e o seu mandatário e, por outro lado, do interesse
público da função do advogado.
A obrigação do advogado ao segredo profissional está
prevista, como princípio de conduta, no art. 81.º do Estatuto da Ordem
dos Advogados (EOA), no qual se estabelece a extensão do dever. Na sua maior
amplitude, de acordo com esta norma, o advogado está obrigado, no âmbito
da sua actividade profissional, a guardar segredo de factos «que lhe tenham
sido revelados pelo cliente ou por sua ordem», pelos «co-autor, co-réu ou
co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante», pela parte
contrária no decurso de negociações extrajudiciais de conciliação e por colega
de profissão, abrangendo ainda documentos relacionados com os factos sujeitos a
segredo. Mas, deve notar-se que a extensão do segredo profissional está
directamente relacionada com a existência efectiva de um segredo, ou seja,
devem excluir-se do âmbito do segredo profissional factos notórios, factos de
domínio público, factos revelados pelas partes, factos provados em juízo,
documentos autênticos e autenticados.
Como forma de reforço do regime geral de segredo
profissional, o legislador estabeleceu outras normas de carácter especifico e
com maior grau de concretização. Uma dessas normas, com particular interesse,
consta do art. 83.º, n.º 1 da al. e, segundo a qual se reafirma a
existência do dever de segredo profissional na relação do advogado com o seu
cliente.
A possibilidade de desvinculação do segredo profissional
pelo advogado está prevista no art. 81.º, n.º 4. Assim, nos termos desta
norma, «cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja
absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos, e interesses
legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante
prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso
para o presidente da Ordem dos Advogados». Como resulta do texto, a
desvinculação do segredo profissional do advogado não depende do mero
consentimento do cliente mas da verificação de dois pressupostos
indispensáveis: o carácter de absoluta necessidade da revelação do segredo em
determinadas situações e a autorização prévia pelo órgão competente. Com esta
solução, o segredo profissional adquire natureza de ordem pública, de um dever
estabelecido no interesse geral da sociedade e da advocacia, afastando-se, de
todo, a sua classificação como uma obrigação de natureza contratual à
disposição do cliente.
A violação do segredo profissional do advogado, não só pelo
advogado mas também pelos seus empregados e colaboradores igualmente vinculados
ao seu cumprimento, constitui um ilícito disciplinar e um ilícito criminal,
podendo ainda integrar um ilícito civil.
Responsabilidade Disciplinar
Comete uma infracção disciplinar, segundo o art. 91.º do
EOA, o advogado que, por acção ou omissão, violar dolosa ou culposamente algum
dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Advogados, dos regulamentos
internos ou das demais disposições aplicáveis. O advogado que viole o dever de
segredo profissional comete, nos termos apontados, um ilícito disciplinar.
A Ordem dos Advogados dispõe, em matéria de procedimento
disciplinar, de competência exclusiva. A competência para o exercício do poder
disciplinar, instrução e julgamento, pertence, como resulta dos arts. 92.º e
93.º do EOA, ao conselho distrital do domicilio profissional do advogado
arguido ou ao conselho superior quando o advogado arguido seja o bastonário, um
antigo bastonário ou antigo ou actual membro dos conselhos superior, geral e
distrital.
O processo disciplinar, segundo o art. 94.º do EOA, «é
instaurado mediante decisão do presidente do conselho superior ou por
deliberação deste ou do conselho distrital competente, com base em participação
dirigida aos órgãos da Ordem dos Advogados por qualquer pessoa, devidamente
identificada, que tenha conhecimento de factos susceptíveis de infracção
disciplinar» (processo comum, art. 108.º e ss), podendo o bastonário e os
conselhos da Ordem dos Advogados, «independentemente de participação, ordenar a
instauração de procedimento disciplinar» (processo de inquérito, art.134.º e
ss).
Como deriva desta norma, a legitimidade de participação
contra um advogado não depende de limites quanto aos sujeitos, podendo ser
efectuada por qualquer pessoa, desde que devidamente identificada; os tribunais
e quaisquer autoridades, por seu turno, devem, nos termos do art. 95.º do EOA,
«dar conhecimento à Ordem dos Advogados da prática por advogados de factos susceptíveis
de constituírem infracção disciplinar». Mas, se as normas são assim para a
participação, a legitimidade de intervenção no processo disciplinar depende, de
acordo com o art. 97.º do EOA, de «interesse directo relativamente aos
factos participados».
O processo, por aplicação do art. 94.º, n.º 3, do EOA,
poderá ser liminarmente indeferido por decisão do bastonário e dos presidentes
do conselho, após diligências preliminares, caso se julgue inviável a
participação contra o advogado. Se o processo não for liminarmente indeferido,
o processo deve ser distribuído para instrução, conforme o art. 109.º, ao
relator que se responsabiliza pelo «andamento da instrução» (art. 111.º) que
termina com despacho de acusação de arquivamento ou determina que o processo
aguarde a produção de melhor prova (art. 114.º).
Se houver despacho de acusação, o advogado arguido é
notificado para apresentar a sua defesa (art. 117.º a 120.º). Uma vez produzida
a prova, o interessado e o advogado arguido são notificados para alegarem por
escrito no prazo de 20 dias sucessivos (art. 122.º). Terminado o referido
prazo, o processo será julgado, podendo as partes recorrer do acórdão final nos
termos do art. 127.º e ss.
Em caso de condenação, o advogado que viole um dever
disciplinar, nomeadamente o segredo profissional, está sujeito às penas
previstas no art. 103.º do EOA, que vão da advertência à pena de suspensão até
15 anos. A pena de expulsão não consta, actualmente, dos Estatutos da Ordem dos
Advogados, embora haja autores que a defendam (ARNAUT, 1994, p. 112). No
entanto, quer-nos parecer que onde existe uma pena de suspensão até 15 anos, de
extraordinária raridade, a pena de expulsão não representa mais que um golpe de
misericórdia de uma carreira tornada com normalidade impossível. Para além de
nos parecer profundamente inútil, peca ainda por ser manifestamente excessiva
num Estado de Direito democrático, onde a dignidade humana está acima de
qualquer interesse, podendo mesmo dizer-se que a sua consagração no direito
disciplinar corresponderia a uma verdadeira pena de morte que o próprio direito
penal insiste em negar.
Responsabilidade Civil
O advogado que violar o dever de segredo profissional, para
além de cometer uma infracção disciplinar, incorre em responsabilidade civil,
extracontratual, com fundamento na prática de um facto ilícito. Como resulta do
art. 483.º do Código Civil (CC), «fica obrigado a indemnizar o lesado pelos
danos resultantes da violação» todo aquele «que, com dolo ou mera culpa, violar
ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios». Nestes termos, o advogado incorre em
responsabilidade civil extracontratual se cometer um facto ilícito, voluntária
e culposamente, de forma a causar um dano ao seu constituinte. A violação de um
dever deontológico, como por exemplo o dever de segredo profissional, constitui
a prática de um facto ilícito, passível de ser integrado na norma referida. Se,
para além de provada a prática do ilícito disciplinar, o constituinte do advogado
provar a culpa deste, de acordo com o art. 487.º do CC, a existência de um dano
ou prejuízo resultante da prática daquele facto ilícito, o advogado incorre,
por consequência em responsabilidade civil.
Um dos problemas que se pode colocar é o de saber se o
advogado, previamente, se pode desvincular da responsabilidade civil por
violação, eventual, de um dever deontológico, ou seja, se o advogado pode
estabelecer, contratualmente, uma cláusula de excepção da responsabilidade de
reparar os prejuízos causados no exercício da sua profissão. No caso de
violação de segredo profissional, que constitui um dever de ordem pública, a
resposta não pode deixar de ser negativa. Tal é a solução resultante do art.
800.º do CC que estabelece que a responsabilidade só pode ser excluída «desde
que a exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de
deveres impostos por normas de ordem pública», pelo que, caso as partes tenham
estabelecido uma cláusula de irresponsabilidade, deve considerar-se, nos termos
do art. 809.º do CC, como «nula».
Um outro problema que pode colocar-se é o de saber se a
prestação do consentimento para revelação de factos ou documentos protegidos
pelo segredo profissional pelo lesado exclui a ilicitude civil e, por
conseguinte, a obrigação de indemnizar do advogado. A solução deste problema
está prevista no art. 340.º, n.º 2, do CC que dispõe que o consentimento do
lesado «não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma
proibição legal ou aos bons costumes». No entanto, deveremos distinguir a
ilicitude civil da obrigação de indemnizar. Se o advogado provar a culpa do
lesado, demonstrando nomeadamente que foi induzido a revelar certos factos ou
documentos abrangidos pelo segredo profissional, ainda que não se afaste a sua
responsabilidade na prática de um facto ilícito, deve considerar-se a medida da
culpa do cliente para efeitos de indemnização, sob pena de ofensa da moral
pública. Tal nos parece ser o sentido da norma do art. 570.º do CC, o qual
estabelece que «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a
produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na
gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultam,
se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
Responsabilidade Criminal
A violação do segredo profissional do advogado, para além de
constituir um ilícito disciplinar e um ilícito civil nos termos referidos,
constitui um ilícito criminal previsto e punido pelo art. 195.º do
Código Penal (CP). De acordo com esta norma, comete um crime de violação de
segredo «Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado
conhecimento em razão do seu estado, oficio, emprego, profissão ou arte»,
podendo ser punido com pena de prisão até um ano ou, em alternativa, a pena de
multa até 240 dias.
Como pode observar-se, a norma penal que prevê o tipo legal
de crime de violação de segredo admite, em geral, que o consentimento do
titular do interesse jurídico em causa como forma de exclusão da ilicitude
conforme o regime jurídico previsto nos arts. 38.º e 39.º do CP.
Como refere o primeiro destes preceitos, «o consentimento exclui a ilicitude do
facto quando se referir a interesse jurídico livremente disponível e o facto
não ofender os bons costumes». De modo que, estando em causa a violação do
dever de segredo profissional do advogado, importa saber se se trata de um
interesse jurídico do cliente livremente disponível.
Há autores que admitem a relevância da causa de exclusão da
ilicitude criminal prevista no art. 38.º do CP se forem verificadas
determinadas condições e autores que defendem a sua absoluta irrelevância no
caso de violação do segredo profissional do advogado. Os autores influenciados
pelas doutrinas baseadas na natureza contratual do dever de segredo
profissional tendem a sustentar que se o dever de segredo for estabelecido
«apenas no interesse do cliente, a autorização é legitima» se for prestada pelo
cliente, enquanto que nos casos em que o segredo envolva outros sujeitos se
impõe a necessidade de «autorização de todos os interessados para excluir a
ilicitude do facto» (FERREIRA, 1991, p. 10). Os autores determinados pela
doutrina da natureza pública do segredo profissional, baseando-se no art. 81.º,
n.º 4, do EOA, sustentam a irrelevância do regime de consentimento do lesado
para afastar a ilicitude criminal resultante da violação do segredo
profissional (ARNAUT, 1994, p. 68).
A primeira das doutrinas não nos parece ter qualquer suporte
legal para excluir a ilicitude da violação do segredo profissional do advogado.
Como resulta expressamente do art. 81.º, n.º 4, a cessação do dever de segredo
profissional depende da absoluta necessidade da sua quebra para defesa da
dignidade, direitos e interesses legítimos do advogado, do cliente ou seus
representantes e da autorização prévia da autoridade competente. Uma vez que
não se verifiquem quaisquer destas condições, o dever de segredo profissional
mantém em qualquer outra situação os seus efeitos deontológicos e jurídicos. O
consentimento do cliente, à luz desta norma, é de facto irrelevante para
determinar a cessação do dever de segredo profissional do advogado. Como também
a Ordem dos Advogados, através do presidente do conselho distrital ou do seu
bastonário, é incompetente para autorizar a quebra do segredo profissional além
da situação prevista. De modo que, o segredo profissional, constitui um
interesse jurídico parcialmente disponível para a Ordem dos Advogados e
absolutamente indisponível para o cliente e quaisquer outros interessados. Ora,
isso significa que, para os efeitos previstos na norma do art.38.º do
CP, o consentimento do cliente é irrelevante para a exclusão da ilicitude
criminal por se referir a um interesse jurídico que não lhe é livremente
disponível. Com este regime surge, assim, reforçada a natureza pública do
segredo profissional cujos créditos reclama não só o cliente, remetido para uma
tutela basicamente civil, e a Ordem dos Advogados, com direitos de procedimento
disciplinar, mas também a sociedade, com interesse público no procedimento
criminal do advogado infractor.
Mas se o segredo profissional constitui um interesse público
de natureza absolutamente indisponível para o cliente e parcialmente
indisponível para a Ordem dos Advogados importa saber em que condições, para lá
da situação prevista no art. 81.º, n.º 4, poderá ser revogado. O Código do
Processo Penal (CPP), no art. 135.º, prevê que o advogado, chamado a depor,
reclame o direito de escusa da revelação de factos e documentos abrangidos
pelo segredo profissional, sob pena de tais factos não constituírem prova por
resultarem da violação de segredo profissional, conforme o art. 81.º, n.º 5. O
tribunal, segundo o art. 135.º, n.º 3, do CPP, poderá decidir, através do
Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a quebra de segredo profissional do advogado
depois de ouvida a Ordem dos Advogados. Perante tal decisão, o advogado não só
pode como deve, de acordo com a doutrina corrente, revelar factos e documentos
tutelados pelo segredo profissional.
O problema tende a deslocar-se para a discussão da natureza
do parecer da Ordem dos Advogados, e consiste em saber se constitui um parecer
vinculativo ou não vinculativo. O Acórdão do STJ, de 22 de Junho de 1988, veio
estabelecer que o parecer da Ordem dos Advogados não é vinculativo e que a
decisão do tribunal se baseia na «reserva da função jurisdicional dos tribunais
e a prevalência das suas decisões sobre qualquer outra autoridade» (ARNAUT,
1994, p. 71). Reagindo a esta posição do STJ, António Arnaut defende que a
cessação do segredo profissional está cometida à Ordem dos Advogados,
impondo-se aos tribunais, e que o parecer da Ordem dos Advogados «deve ter o
mesmo valor processual de um parecer técnico» (ARNAUT, 1994, p. 71).
Todavia, esta questão não só não nos parece bem colocada
como nos parece menos bem resolvida. Em primeiro lugar, o parecer da Ordem dos
Advogados deve limitar-se ao conjunto das competências que lhe são cometidas
pelo art. 81.º, n.º 4, não podendo decidir para além das situações aí
previstas. Uma vez que a sua decisão, favorável ou desfavorável, se limite ao
âmbito da norma deve considerar-se a única decisão legítima por força da lei. O
que significa que o argumento da prevalência da decisão jurisdicional não faz,
no caso presente, qualquer sentido e deve considerar-se ilegal. Em segundo
lugar, o parecer favorável da Ordem dos Advogados para além das situações
previstas na norma do art. 81.º, n.º 4, deve considerar-se também ele ilegal,
como ilegal a decisão judicial que nela se funde como forma de obrigar o
advogado a revelar factos ou documentos cobertos pelo segredo profissional.
Nesse sentido, a decisão presente no referido acórdão do STJ
é, necessariamente, ilegal por violar abusivamente a competência exclusiva de
um órgão especificamente qualificado pela lei para produzir uma determinada
decisão. Por outro lado, a decisão da Ordem dos Advogados deve limitar-se ao
âmbito da competência que lhe foi cometida. Para além destes limites, quaisquer
destes órgãos comete uma ilegalidade. Cometida uma ou outra destas
ilegalidades, em nossa opinião, o advogado deve recusar-se a depor sobre
os factos ou documentos abrangidos pelo segredo profissional, não cometendo por
isso o crime previsto e punido pelo art. 360.º, n.º 2, do CP.
O problema, visto deste modo, não terá, de imediato, que
passar pela invocação do regime de objecção de consciência, como defende
António Arnaut; basta ao advogado invocar a ilegalidade da decisão de
quebra de segredo profissional que ultrapasse o âmbito da norma do art. 81.º,
n.º4, do EOA. Se, em via de recurso com fundamento em ilegalidade, a decisão de
quebra do segredo profissional se mantiver, então, aí sim, o advogado deve
reclamar o estatuto de objector de consciência, perfeitamente
justificável perante um dever com tão intensa profundidade.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, L. P. Moitinho, Responsabilidade Civil dos
Advogados, Coimbra:
Coimbra Editora, 1985.
ARNAUT, António, Iniciação à Advocacia. História.
Deontologia. Questões Práticas, 2.ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
ARNAUT, António, Estatuto da Ordem dos Advogados, (Anotado),
Coimbra: Fora de Texto, 1995.
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Coimbra:
Universidade de Coimbra, lições policopiadas, 197?.
DIAS, Jorge de Figueiredo, «Pressupostos e Causas que
Excluem a Ilicitude e a Culpa», in Jornadas de Direito Criminal.
FERREIRA, Cremilda Maria Ramos, Sigilo Profissional na
Advocacia. Responsabilidade decorrente da Violação do Dever de Sigilo, Coimbra:
Coimbra Editora, 1991.