domingo, 11 de novembro de 2012

A Responsabilidade do Advogado por Violação do Segredo Profissional



A Responsabilidade do Advogado por Violação do Segredo Profissional


 


Trabalho de fim de estágio apresentado ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados de Coimbra, Novembro de 1997. Publicado na Revista da Ordem dos Advogados

 
O advogado está obrigado, ética e juridicamente, a manter segredo de todos os factos e documentos de que tome conhecimento, directa ou indirectamente, no exercício da sua profissão. O segredo profissional do advogado deriva de dois fundamentos básicos: por um lado, da necessidade de tutela da relação de confiança que deve existir entre o cliente e o seu mandatário e, por outro lado, do interesse público da função do advogado.
A obrigação do advogado ao segredo profissional está prevista, como princípio de conduta, no art. 81.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), no qual se estabelece a extensão do dever. Na sua maior amplitude, de acordo com esta norma, o advogado está obrigado, no âmbito da sua actividade profissional, a guardar segredo de factos «que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem», pelos «co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante», pela parte contrária no decurso de negociações extrajudiciais de conciliação e por colega de profissão, abrangendo ainda documentos relacionados com os factos sujeitos a segredo. Mas, deve notar-se que a extensão do segredo profissional está directamente relacionada com a existência efectiva de um segredo, ou seja, devem excluir-se do âmbito do segredo profissional factos notórios, factos de domínio público, factos revelados pelas partes, factos provados em juízo, documentos autênticos e autenticados.
Como forma de reforço do regime geral de segredo profissional, o legislador estabeleceu outras normas de carácter especifico e com maior grau de concretização. Uma dessas normas, com particular interesse, consta do art. 83.º, n.º 1 da al. e, segundo a qual se reafirma a existência do dever de segredo profissional na relação do advogado com o seu cliente.
A possibilidade de desvinculação do segredo profissional pelo advogado está prevista no art. 81.º, n.º 4. Assim, nos termos desta norma, «cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos, e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o presidente da Ordem dos Advogados». Como resulta do texto, a desvinculação do segredo profissional do advogado não depende do mero consentimento do cliente mas da verificação de dois pressupostos indispensáveis: o carácter de absoluta necessidade da revelação do segredo em determinadas situações e a autorização prévia pelo órgão competente. Com esta solução, o segredo profissional adquire natureza de ordem pública, de um dever estabelecido no interesse geral da sociedade e da advocacia, afastando-se, de todo, a sua classificação como uma obrigação de natureza contratual à disposição do cliente.
A violação do segredo profissional do advogado, não só pelo advogado mas também pelos seus empregados e colaboradores igualmente vinculados ao seu cumprimento, constitui um ilícito disciplinar e um ilícito criminal, podendo ainda integrar um ilícito civil.

Responsabilidade Disciplinar

Comete uma infracção disciplinar, segundo o art. 91.º do EOA, o advogado que, por acção ou omissão, violar dolosa ou culposamente algum dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Advogados, dos regulamentos internos ou das demais disposições aplicáveis. O advogado que viole o dever de segredo profissional comete, nos termos apontados, um ilícito disciplinar.
A Ordem dos Advogados dispõe, em matéria de procedimento disciplinar, de competência exclusiva. A competência para o exercício do poder disciplinar, instrução e julgamento, pertence, como resulta dos arts. 92.º e 93.º do EOA, ao conselho distrital do domicilio profissional do advogado arguido ou ao conselho superior quando o advogado arguido seja o bastonário, um antigo bastonário ou antigo ou actual membro dos conselhos superior, geral e distrital.
O processo disciplinar, segundo o art. 94.º do EOA, «é instaurado mediante decisão do presidente do conselho superior ou por deliberação deste ou do conselho distrital competente, com base em participação dirigida aos órgãos da Ordem dos Advogados por qualquer pessoa, devidamente identificada, que tenha conhecimento de factos susceptíveis de infracção disciplinar» (processo comum, art. 108.º e ss), podendo o bastonário e os conselhos da Ordem dos Advogados, «independentemente de participação, ordenar a instauração de procedimento disciplinar» (processo de inquérito, art.134.º e ss).
Como deriva desta norma, a legitimidade de participação contra um advogado não depende de limites quanto aos sujeitos, podendo ser efectuada por qualquer pessoa, desde que devidamente identificada; os tribunais e quaisquer autoridades, por seu turno, devem, nos termos do art. 95.º do EOA, «dar conhecimento à Ordem dos Advogados da prática por advogados de factos susceptíveis de constituírem infracção disciplinar». Mas, se as normas são assim para a participação, a legitimidade de intervenção no processo disciplinar depende, de acordo com o art. 97.º do EOA, de «interesse directo relativamente aos factos participados».
O processo, por aplicação do art. 94.º, n.º 3, do EOA, poderá ser liminarmente indeferido por decisão do bastonário e dos presidentes do conselho, após diligências preliminares, caso se julgue inviável a participação contra o advogado. Se o processo não for liminarmente indeferido, o processo deve ser distribuído para instrução, conforme o art. 109.º, ao relator que se responsabiliza pelo «andamento da instrução» (art. 111.º) que termina com despacho de acusação de arquivamento ou determina que o processo aguarde a produção de melhor prova (art. 114.º).
Se houver despacho de acusação, o advogado arguido é notificado para apresentar a sua defesa (art. 117.º a 120.º). Uma vez produzida a prova, o interessado e o advogado arguido são notificados para alegarem por escrito no prazo de 20 dias sucessivos (art. 122.º). Terminado o referido prazo, o processo será julgado, podendo as partes recorrer do acórdão final nos termos do art. 127.º e ss.
Em caso de condenação, o advogado que viole um dever disciplinar, nomeadamente o segredo profissional, está sujeito às penas previstas no art. 103.º do EOA, que vão da advertência à pena de suspensão até 15 anos. A pena de expulsão não consta, actualmente, dos Estatutos da Ordem dos Advogados, embora haja autores que a defendam (ARNAUT, 1994, p. 112). No entanto, quer-nos parecer que onde existe uma pena de suspensão até 15 anos, de extraordinária raridade, a pena de expulsão não representa mais que um golpe de misericórdia de uma carreira tornada com normalidade impossível. Para além de nos parecer profundamente inútil, peca ainda por ser manifestamente excessiva num Estado de Direito democrático, onde a dignidade humana está acima de qualquer interesse, podendo mesmo dizer-se que a sua consagração no direito disciplinar corresponderia a uma verdadeira pena de morte que o próprio direito penal insiste em negar.

Responsabilidade Civil

O advogado que violar o dever de segredo profissional, para além de cometer uma infracção disciplinar, incorre em responsabilidade civil, extracontratual, com fundamento na prática de um facto ilícito. Como resulta do art. 483.º do Código Civil (CC), «fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» todo aquele «que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios». Nestes termos, o advogado incorre em responsabilidade civil extracontratual se cometer um facto ilícito, voluntária e culposamente, de forma a causar um dano ao seu constituinte. A violação de um dever deontológico, como por exemplo o dever de segredo profissional, constitui a prática de um facto ilícito, passível de ser integrado na norma referida. Se, para além de provada a prática do ilícito disciplinar, o constituinte do advogado provar a culpa deste, de acordo com o art. 487.º do CC, a existência de um dano ou prejuízo resultante da prática daquele facto ilícito, o advogado incorre, por consequência em responsabilidade civil.
Um dos problemas que se pode colocar é o de saber se o advogado, previamente, se pode desvincular da responsabilidade civil por violação, eventual, de um dever deontológico, ou seja, se o advogado pode estabelecer, contratualmente, uma cláusula de excepção da responsabilidade de reparar os prejuízos causados no exercício da sua profissão. No caso de violação de segredo profissional, que constitui um dever de ordem pública, a resposta não pode deixar de ser negativa. Tal é a solução resultante do art. 800.º do CC que estabelece que a responsabilidade só pode ser excluída «desde que a exclusão ou limitação não compreenda actos que representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública», pelo que, caso as partes tenham estabelecido uma cláusula de irresponsabilidade, deve considerar-se, nos termos do art. 809.º do CC, como «nula».
Um outro problema que pode colocar-se é o de saber se a prestação do consentimento para revelação de factos ou documentos protegidos pelo segredo profissional pelo lesado exclui a ilicitude civil e, por conseguinte, a obrigação de indemnizar do advogado. A solução deste problema está prevista no art. 340.º, n.º 2, do CC que dispõe que o consentimento do lesado «não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes». No entanto, deveremos distinguir a ilicitude civil da obrigação de indemnizar. Se o advogado provar a culpa do lesado, demonstrando nomeadamente que foi induzido a revelar certos factos ou documentos abrangidos pelo segredo profissional, ainda que não se afaste a sua responsabilidade na prática de um facto ilícito, deve considerar-se a medida da culpa do cliente para efeitos de indemnização, sob pena de ofensa da moral pública. Tal nos parece ser o sentido da norma do art. 570.º do CC, o qual estabelece que «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultam, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

Responsabilidade Criminal

A violação do segredo profissional do advogado, para além de constituir um ilícito disciplinar e um ilícito civil nos termos referidos, constitui um ilícito criminal previsto e punido pelo art. 195.º do Código Penal (CP). De acordo com esta norma, comete um crime de violação de segredo «Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, oficio, emprego, profissão ou arte», podendo ser punido com pena de prisão até um ano ou, em alternativa, a pena de multa até 240 dias.
Como pode observar-se, a norma penal que prevê o tipo legal de crime de violação de segredo admite, em geral, que o consentimento do titular do interesse jurídico em causa como forma de exclusão da ilicitude conforme o regime jurídico previsto nos arts. 38.º e 39.º do CP. Como refere o primeiro destes preceitos, «o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesse jurídico livremente disponível e o facto não ofender os bons costumes». De modo que, estando em causa a violação do dever de segredo profissional do advogado, importa saber se se trata de um interesse jurídico do cliente livremente disponível.
Há autores que admitem a relevância da causa de exclusão da ilicitude criminal prevista no art. 38.º do CP se forem verificadas determinadas condições e autores que defendem a sua absoluta irrelevância no caso de violação do segredo profissional do advogado. Os autores influenciados pelas doutrinas baseadas na natureza contratual do dever de segredo profissional tendem a sustentar que se o dever de segredo for estabelecido «apenas no interesse do cliente, a autorização é legitima» se for prestada pelo cliente, enquanto que nos casos em que o segredo envolva outros sujeitos se impõe a necessidade de «autorização de todos os interessados para excluir a ilicitude do facto» (FERREIRA, 1991, p. 10). Os autores determinados pela doutrina da natureza pública do segredo profissional, baseando-se no art. 81.º, n.º 4, do EOA, sustentam a irrelevância do regime de consentimento do lesado para afastar a ilicitude criminal resultante da violação do segredo profissional (ARNAUT, 1994, p. 68).
A primeira das doutrinas não nos parece ter qualquer suporte legal para excluir a ilicitude da violação do segredo profissional do advogado. Como resulta expressamente do art. 81.º, n.º 4, a cessação do dever de segredo profissional depende da absoluta necessidade da sua quebra para defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do advogado, do cliente ou seus representantes e da autorização prévia da autoridade competente. Uma vez que não se verifiquem quaisquer destas condições, o dever de segredo profissional mantém em qualquer outra situação os seus efeitos deontológicos e jurídicos. O consentimento do cliente, à luz desta norma, é de facto irrelevante para determinar a cessação do dever de segredo profissional do advogado. Como também a Ordem dos Advogados, através do presidente do conselho distrital ou do seu bastonário, é incompetente para autorizar a quebra do segredo profissional além da situação prevista. De modo que, o segredo profissional, constitui um interesse jurídico parcialmente disponível para a Ordem dos Advogados e absolutamente indisponível para o cliente e quaisquer outros interessados. Ora, isso significa que, para os efeitos previstos na norma do art.38.º do CP, o consentimento do cliente é irrelevante para a exclusão da ilicitude criminal por se referir a um interesse jurídico que não lhe é livremente disponível. Com este regime surge, assim, reforçada a natureza pública do segredo profissional cujos créditos reclama não só o cliente, remetido para uma tutela basicamente civil, e a Ordem dos Advogados, com direitos de procedimento disciplinar, mas também a sociedade, com interesse público no procedimento criminal do advogado infractor.
Mas se o segredo profissional constitui um interesse público de natureza absolutamente indisponível para o cliente e parcialmente indisponível para a Ordem dos Advogados importa saber em que condições, para lá da situação prevista no art. 81.º, n.º 4, poderá ser revogado. O Código do Processo Penal (CPP), no art. 135.º, prevê que o advogado, chamado a depor, reclame o direito de escusa da revelação de factos e documentos abrangidos pelo segredo profissional, sob pena de tais factos não constituírem prova por resultarem da violação de segredo profissional, conforme o art. 81.º, n.º 5. O tribunal, segundo o art. 135.º, n.º 3, do CPP, poderá decidir, através do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a quebra de segredo profissional do advogado depois de ouvida a Ordem dos Advogados. Perante tal decisão, o advogado não só pode como deve, de acordo com a doutrina corrente, revelar factos e documentos tutelados pelo segredo profissional.
O problema tende a deslocar-se para a discussão da natureza do parecer da Ordem dos Advogados, e consiste em saber se constitui um parecer vinculativo ou não vinculativo. O Acórdão do STJ, de 22 de Junho de 1988, veio estabelecer que o parecer da Ordem dos Advogados não é vinculativo e que a decisão do tribunal se baseia na «reserva da função jurisdicional dos tribunais e a prevalência das suas decisões sobre qualquer outra autoridade» (ARNAUT, 1994, p. 71). Reagindo a esta posição do STJ, António Arnaut defende que a cessação do segredo profissional está cometida à Ordem dos Advogados, impondo-se aos tribunais, e que o parecer da Ordem dos Advogados «deve ter o mesmo valor processual de um parecer técnico» (ARNAUT, 1994, p. 71).
Todavia, esta questão não só não nos parece bem colocada como nos parece menos bem resolvida. Em primeiro lugar, o parecer da Ordem dos Advogados deve limitar-se ao conjunto das competências que lhe são cometidas pelo art. 81.º, n.º 4, não podendo decidir para além das situações aí previstas. Uma vez que a sua decisão, favorável ou desfavorável, se limite ao âmbito da norma deve considerar-se a única decisão legítima por força da lei. O que significa que o argumento da prevalência da decisão jurisdicional não faz, no caso presente, qualquer sentido e deve considerar-se ilegal. Em segundo lugar, o parecer favorável da Ordem dos Advogados para além das situações previstas na norma do art. 81.º, n.º 4, deve considerar-se também ele ilegal, como ilegal a decisão judicial que nela se funde como forma de obrigar o advogado a revelar factos ou documentos cobertos pelo segredo profissional.
Nesse sentido, a decisão presente no referido acórdão do STJ é, necessariamente, ilegal por violar abusivamente a competência exclusiva de um órgão especificamente qualificado pela lei para produzir uma determinada decisão. Por outro lado, a decisão da Ordem dos Advogados deve limitar-se ao âmbito da competência que lhe foi cometida. Para além destes limites, quaisquer destes órgãos comete uma ilegalidade. Cometida uma ou outra destas ilegalidades, em nossa opinião, o advogado deve recusar-se a depor sobre os factos ou documentos abrangidos pelo segredo profissional, não cometendo por isso o crime previsto e punido pelo art. 360.º, n.º 2, do CP.
O problema, visto deste modo, não terá, de imediato, que passar pela invocação do regime de objecção de consciência, como defende António Arnaut; basta ao advogado invocar a ilegalidade da decisão de quebra de segredo profissional que ultrapasse o âmbito da norma do art. 81.º, n.º4, do EOA. Se, em via de recurso com fundamento em ilegalidade, a decisão de quebra do segredo profissional se mantiver, então, aí sim, o advogado deve reclamar o estatuto de objector de consciência, perfeitamente justificável perante um dever com tão intensa profundidade.
 

BIBLIOGRAFIA
 

ALMEIDA, L. P. Moitinho, Responsabilidade Civil dos Advogados, Coimbra:
Coimbra Editora, 1985.
ARNAUT, António, Iniciação à Advocacia. História. Deontologia. Questões Práticas, 2.ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
ARNAUT, António, Estatuto da Ordem dos Advogados, (Anotado), Coimbra: Fora de Texto, 1995.
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Coimbra: Universidade de Coimbra, lições policopiadas, 197?.
DIAS, Jorge de Figueiredo, «Pressupostos e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in Jornadas de Direito Criminal.
FERREIRA, Cremilda Maria Ramos, Sigilo Profissional na Advocacia. Responsabilidade decorrente da Violação do Dever de Sigilo, Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

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